O
NEGÓCIO DE BRUNO
De vez em quando, vejo um deles na rua. No metrô. Num restaurante. São
velhos de aparência comum. Homens, em geral. As mulheres são mais difíceis de
reconhecer; só um olhar mais insistente, focado, pode detectá-las. Mas em alguns casos, nem o
vestidinho florido as disfarça... É só trocarmos um rápido olhar e elas fogem.
E os passageiros se perguntam porque aquela senhora idosa saiu do vagão tão
assustada...
Com os homens é diferente. São mais lerdos. Antes que percebam, meu olhar
já está trancado no deles, e não podem fugir.
Eles são os clientes de Bruno. E no começo, não me dizem nada. A dor é
grande demais. As grandes dores são mudas.
A não ser, é claro, que estejamos falando de quimioterapia.
Eu estava há meses em tratamento, entrando e saindo do hospital. Mas os
médicos falavam em progressos. Davam esperanças. Me lembro dos olhos dos meus
pais brilhando. “O tumor regrediu... O tratamento está funcionando...” Eles
esqueciam que já tínhamos ouvido aquelas palavras antes. O tumor sempre
voltava.
Eu ouvia os médicos, fingia prestar atenção. Estavam apenas adiando o
inevitável.
De vez em quando, é verdade, me davam alta. Eu voltava para casa; uma vez
até voltei à escola. Dali a pouco, a ronda infernal recomeçava: o consultório,
os exames, os resultados dos exames, a quimio, o hospital.
Todo mundo sente pena de jovens com uma doença fatal. Mas agora eu sei
que existem coisas piores.
Repito: existem coisas piores do
que uma doença fatal.
Encontrei Bruno por acaso, saindo de uma consulta, numa lanchonete
próxima ao hospital. Eu estava num intervalo da doença. Exibia um simulacro de
saúde.
Naquela época, eu tinha um bom médico. Ele nunca usava palavras
definitivas, só gerúndios. Dizia que eu estava fazendo progressos, que o
tratamento estava se encaminhando bem.
Na consulta daquela tarde, ele sorria para mim, com os olhos cheios de
compaixão. Segurava a mão da minha mãe, exalando simpatia, conforto, otimismo.
O que mais alguém pode pedir de um oncologista?
Ele sempre falava das perspectivas para os próximos meses.
Ele nunca falava do próximo ano.
Com a mão já na maçaneta, me virei e perguntei, hesitante, se podia
destrancar a matrícula na faculdade. O sorriso de minha mãe sumiu. O dele
permaneceu, congelado, enquanto me dizia para esperar mais um pouco.
Só mais algumas semanas.
Minha mãe desceu comigo no elevador, em direção à garagem onde deixara o
carro. Tagarelava sem parar, falando do passeio à praia que faríamos com toda a
família. Apertei o botão do térreo.
- Onde você vai?
- Dar uma volta. Passear um pouco.
- Mas...
- Não se preocupe, de noite estou em casa.
Ela abriu a boca para protestar, mas a porta do elevador já se fechava.
Eu não queria ir a nenhum lugar em especial. Não queria nem mesmo ficar
sozinha com meus pensamentos. Queria me misturar às outras pessoas na rua,
sumir na multidão, desapercebida. Meu cabelo tinha crescido um pouco, eu não
precisava mais usar aqueles lenços de cores alegres amarrados ao crânio. Na
rua, ninguém olhava para mim; e isso já era um alívio.
Só o homem na lanchonete, onde parei para tomar um capuccino, olhou para
mim.
Não levei a mal aquele olhar. Fazia tanto tempo que eu não ficava com
ninguém, mal lembrava do meu último namoro. E depois, aquele homem devia ter no
mínimo uns setenta anos.
É verdade que não me dirigia aquele olhar bondoso das pessoas mais velhas
– na época que eu estava careca, era um festival de olhares de compaixão. Era
um olhar interessado, embora talvez não de interesse sexual... No fundo, toda
essa história é uma questão de olhares.
Bruno me olhava como se enxergasse em mim uma perspectiva.
Velho ou não, foi com um movimento
ágil e decidido que ele se levantou da sua cadeira, pegou a bandeja – estava
comendo um sanduíche de queijo, se não me engano – e se aproximou de minha mesa.
- Posso sentar aqui? - perguntou.
Concordei, achei ótimo. Nem me lembrava da última vez que conversara com
alguém que não estivesse morrendo de pena de mim. Meus amigos, que no começo me
visitavam bastante, agora já espaçavam as visitas. Estavam ocupados. Ocupados
com a vida – estudo, namoro, trabalho, aquelas coisas odiosamente normais.
O que mais contar? Havia em Bruno alguma coisa diferente dos outros
velhos. Os cabelos brancos eram compridos, ele usava uma calça jeans. Não
sentia, na sua atitude, a condescendência tradicional que os mais velhos têm
com os jovens. Me fazia perguntas e ouvia com atenção minhas respostas.
Naquela conversa, não fiquei sabendo muita coisa sobre sua vida; apenas
que era solteiro e não tinha filhos. Morava sozinho num pequeno apartamento do
centro da cidade. Algumas vezes, quando estávamos passeando, me mostrou o
local. “Da próxima vez vamos tomar um café lá”, prometia. Mas a próxima vez
demorou para chegar.
Não contei logo a ele da minha doença. Só no dia em que chegaram os
resultados dos meus exames. Nesse dia, o
médico bondoso foi obrigado a dizer algumas coisas desagradáveis aos meus pais.
Minha mãe chorou. Meu pai perguntou se não haveria algum engano. O médico
respondeu que, sem dúvida, a Medicina não é infalível, mas... Eu fiquei olhando
para a parede em frente a mim. Uma parede branca – a única que não estava
coberta com os diplomas e títulos do doutor. Minha mente também estava em
branco, eu não pensava em nada. Há alguns meses tinha começado a fazer
meditação, a terapeuta dizia que ajudava.
Esvaziei a mente.
Naquela noite, escapuli de casa e fui procurar Bruno. Marquei um encontro
no bar onde sempre nos víamos. Ignorei os chamados frenéticos dos meus pais no
celular. Bruno ouviu minha história como se já esperasse tudo aquilo.
- É uma pena, disse no fim. Eu sou um velho, e no entanto, vou viver mais
que você.
Olhei para ele, magoada. Mas o seu rosto continuava sereno, sem sinal de
crueldade.
- Não é justo – disse, balançando a cabeça.
Explodi em soluços, e ele me abraçou. Senti o cheiro fraco, levemente
adocicado do seu corpo. Os velhos cheiram diferente. Me endireitei, enxuguei as
lágrimas e olhei direto para ele:
- Eu queria ir pra sua casa.
Ele balançou a cabeça, como se já esperasse por aquilo:
- Mais tarde. – disse, cortês. - Um dia desses.
Depois disso, Bruno sumiu. O telefone que tinha me dado não atendia.
Também não tinha secretária eletrônica. (Há algo de fantasmagórico num telefone
que toca sem parar, sem resposta nenhuma, humana ou eletrônica).
Nas semanas que se seguiram, meu estado piorou. Comecei a desejar que
tudo se acabasse logo. Depressa. Estava farta das injeções, dos remédios, dos
presentinhos que as visitas traziam (minha família tinha obsessão por geléias),
dos programas vespertinos de tevê; e principalmente dos ursos de pelúcia que,
no meu quarto, ainda lembravam a infância.
Eu não iria muito além dos ursos de pelúcia...
Também estava farta das caras pálidas e tristes dos meus pais. Imaginava
como a vida deles seria melhor sem mim. E meus irmãos, então? Que descanso para
os dois.
Dessa vez não fui internada. Pedi para ficar em casa. Atenderam o meu
pedido sem discussão: mau sinal.
A janela do meu quarto dava de frente para o paredão de um outro
edifício. No primeiro dia em que pude me levantar da cama, olhei com cobiça o
estreito espaço dentre os dois prédios. Doze andares. Mais do que suficiente.
Pensei naquele espaço durante dias. Mas meu organismo, aos poucos, ia reagindo.
Eu estava melhor. Talvez ainda tivesse algum tempo para realizar alguns
desejos. Pensei na minha nova obsessão: a carne cansada de Bruno. Era um
capricho. Talvez fosse até sintoma da doença, por que não? afetando o meu
comportamento. (Estranho. Eu estava morrendo, mas o meu corpo continuava
fabricando hormônios, exigindo resposta para incômodas urgências, que tinham
como fim último a preservação da espécie. Não tinha o menor sentido).
Assim que me senti capaz, saí do prédio, peguei um táxi e fui visitar
Bruno.
Era um prédio velho e escuro. Devia ter visto dias melhores, antes que
alguém tivesse a péssima idéia de construir um viaduto à sua frente.
O porteiro me informou o número do apartamento de Bruno, e disse que o
interfone estava quebrado. Quando perguntei se poderia subir, encolheu os
ombros. O elevador tremia tanto, que pensei que não sobreviveria à viagem.
Seria bem irônico, morrer de um acidente àquela altura...
Lá em cima, toquei a campainha e esperei. Nada. Experimentei a maçaneta.
A porta estava aberta. Entrei.
O apartamento de Bruno era pequeno. Despersonalizado. Dava a impressão de
que ele comprara seus móveis, e até a gravura modernista que adornava as
paredes, num dos “lixões” que proliferavam na vizinhança. Fui até o quarto.
Estava vazio, com a cama feita. A cozinha, arrumada. Algumas xícaras do
café-da-manhã ainda descansavam no escorredor. Na geladeira, laticínios,
frutas, e uma embalagem de comida congelada.
Decepcionante – refleti, voltando ao quarto e me sentando na cama. Com
uma pessoa tão misteriosa quanto Bruno poderia morar num lugar tão banal? E no
entanto, o apartamento era mesmo dele. Encontrei até um livro que tinha lhe
dado de presente, com a dedicatória escrita por mim.
Eu era uma garota mimada e prepotente. A proximidade da morte tinha
derretido meus limites, que nunca foram grandes. Já que estava no apartamento,
não vi nada de errado em revistá-lo.
Comecei revirando as gavetas da cômoda. Coisas mais pessoais começaram a
surgir. Um retrato recente de uma mulher, morena, muito jovem, de grandes
olheiras. “Sua para sempre, Luísa”. O cartão de um rapaz: “Diego Moreira,
engenheiro”. Engenheiro? Uma foto de um
outro rapaz, sorrindo, tímido: “Com todo o amor para o Bruno, Artur”.
Bruno era um conquistador – pensei. E, pelo visto, não fazia diferenças
entre os dois sexos. Que me importava, compraria o pacote todo.
Foi então que passei a mão debaixo de uma camisa azul de listras, e senti
um pequeno retângulo plastificado. Era um documento de identidade. “Bruno
Garcez”. A foto era de um adolescente
moreno, de olhos idênticos aos do meu amigo. Um filho, talvez? Mas não, o pai
daquele rapaz se chamava João. Comecei a esquadrinhar o RG, e quanto mais
olhava, quanto mais examinava, mais me convencia de algo incrível. O portador
daquele documento era meu amigo Bruno.
E, se a data de nascimento estivesse certa, ele era só três anos mais
velho que eu.
Quando Bruno chegou, pedi explicações. Ele não se perturbou, apenas
disse:
- Sabia que um dia você ia descobrir. Você é esperta, Ana.
Não lhe apontei o óbvio - ou seja, que não era preciso ser esperta para
entrar no apartamento de alguém, revirar suas coisas e achar um documento.
Continuei olhando fixamente para ele, aguardando uma explicação.
- Quer chá? - sem esperar pela minha resposta, ele encaminhou-se para a
cozinha. Fui atrás dele – Eu te falei desde o começo, não é um bom negócio.
- O que não é um bom negócio?
- Há uns cinco anos, eu era como você. Jovem, muito jovem, esperando a
morte num hospital.
Colocou água numa panelinha, acendeu o fogo e me olhou nos olhos. Eu devia
ter percebido antes: Bruno tinha olhos de adolescente.
- Aí alguém me fez uma proposta. E eu aceitei.
Quem era esse alguém? Bruno teve um sorriso malicioso: “Um sedutor”,
respondeu. Na época lhe pareceu um excelente negócio. Só mais tarde foi
perceber as desvantagens da troca. Estava vivo,
mas...
Falei sem pensar:
- Pois eu aceitaria essa troca.
- Bem se vê que você não passou o que passei... Sabe o que é ver os
olhares das mulheres desviarem de você? Sentir dores no joelho, cada vez que
tenta correr? Ou ficar sozinho o resto da vida, porque não pode dividir sua
história com ninguém?
- Eu estou sozinha também. E não posso dividir minha história.
- Entendo – afirmou Bruno. - Já passei por isso.
Engraçado como as coisas mudaram, naquela noite. Cheguei naquele
apartamento com uma expectativa muito clara, mas nada se passou como eu
esperava. Em vez de provar da velha carne adocicada de Bruno, às onze da noite
estávamos sentados à mesa da cozinha, negociando o acordo ao qual estou presa
até hoje.
Fez parte do trato, eu imagino, uma amnésia parcial. Não tenho recordação
exata dos termos que aceitei. É tudo muito vago, esfumado. Fechei negócio com
Bruno. Sei o que comprei, e o preço que paguei. Mas os detalhes do acordo me
escapam. Me lembro apenas de ter pensado que não tinha nada a perder.
O preço que Bruno pedia pela minha vida, naquele momento, não me pareceu tão pesado. E no entanto, ele
me avisou que era alto demais, que não valia a pena. Parecia relutante em
vender sua mercadoria. Hoje sei que isso faz parte do seu repertório de
truques. Odeio Bruno.
Duas imagens perduram, do começo e do fim da nossa conversa. Na primeira,
estamos conversando, sentados àquela mesa. Na segunda, ele me avisa,
calmamente:
- É melhor você não voltar hoje para casa.
Olhei para minha mão, tão branca e lisa. De repente ela começou a se
enrugar, a ficar torta, se encher de pintas, a se engelhar. Eu nunca mais
poderia voltar para casa. Bruno me dera a pior das maldições: a vida eterna. O
preço? Era aquele mesmo.
Arrastei-me até o seu quarto (como doíam meus joelhos!) e quando me vi no
único espelho da casa, tive uma crise de gritos e choro.
O arrependimento foi instantâneo. Chorei, implorei, pedi para voltar
atrás. Disse que não me importava de morrer. Ele pediu que me acalmasse. Fosse
à cozinha, tomar um copo d'água com açúcar.
Quando voltei para a sala. Bruno tinha ido embora, e nunca mais o vi.
Claro que o persegui pela cidade inteira. Demorou anos para que
desistisse de encontrá-lo. Anos de solidão e de medo. De dormir na rua com um
velho cobertor puxado sobre a cabeça, vigiando para que ninguém viesse roubar
meus poucos pertences.
Uma vez, um sujeito me enfiou uma faca no coração. No dia seguinte,
acordei ilesa.
Hoje tenho um emprego de vendedora, numa lojinha escura da parte mais
decadente do centro da cidade. O dono me paga o suficiente para custear uma
quitinete ali perto, e ainda me dá uma refeição por dia. É um bom rapaz.
Quando não estou na loja, ando horas e horas pela cidade. Como já disse,
perdi as esperanças de encontrar Bruno. Mas procuro me aproximar de seus
clientes. É difícil, porque a maioria tenta fugir. Eles acham que já existe
miséria suficiente em suas vidas, e não querem conhecer seus iguais.
Quando consigo me aproximar de um desses velhos patéticos, puxo do bolso
a sua carteira de identidade e a mostro. Todos eles já viram esse documento.
Todos contam a mesma coisa. Eram jovens,
e estavam morrendo. Foram abordados pelo mesmo homem, um tanto relutante. A
história é quase idêntica:
- Ele avisou que eu estava fazendo um mau negócio...
Eles nem imaginavam o quão ruim seria.
Nos reunimos de vez em quando. Estamos sempre doentes, temos todas as
doenças da velhice. Mas o nosso número é sempre o mesmo. Ninguém jamais
desaparece. Juntos, chegamos a uma conclusão: é preciso encontrar Bruno. Ele é
o empresário. O dono desse sinistro negócio. Deve desfazer o mal que nos fez.
E, se não conseguir...
Não me pergunte por quê. Mas temos certeza de que Bruno não é imortal.