domingo, 7 de setembro de 2014

O NEGÓCIO DE BRUNO

De vez em quando, vejo um deles na rua. No metrô. Num restaurante. São velhos de aparência comum. Homens, em geral. As mulheres são mais difíceis de reconhecer; só um olhar mais insistente, focado, pode detectá-las. Mas em alguns casos, nem o vestidinho florido as disfarça... É só trocarmos um rápido olhar e elas fogem. E os passageiros se perguntam porque aquela senhora idosa saiu do vagão tão assustada...
Com os homens é diferente. São mais lerdos. Antes que percebam, meu olhar já está trancado no deles, e não podem fugir.
Eles são os clientes de Bruno. E no começo, não me dizem nada. A dor é grande demais. As grandes dores são mudas.

A não ser, é claro, que estejamos falando de quimioterapia.

Eu estava há meses em tratamento, entrando e saindo do hospital. Mas os médicos falavam em progressos. Davam esperanças. Me lembro dos olhos dos meus pais brilhando. “O tumor regrediu... O tratamento está funcionando...” Eles esqueciam que já tínhamos ouvido aquelas palavras antes. O tumor sempre voltava.
Eu ouvia os médicos, fingia prestar atenção. Estavam apenas adiando o inevitável.
De vez em quando, é verdade, me davam alta. Eu voltava para casa; uma vez até voltei à escola. Dali a pouco, a ronda infernal recomeçava: o consultório, os exames, os resultados dos exames, a quimio, o hospital.
Todo mundo sente pena de jovens com uma doença fatal. Mas agora eu sei que existem coisas piores.
Repito: existem coisas piores do que uma doença fatal.

Encontrei Bruno por acaso, saindo de uma consulta, numa lanchonete próxima ao hospital. Eu estava num intervalo da doença. Exibia um simulacro de saúde.
Naquela época, eu tinha um bom médico. Ele nunca usava palavras definitivas, só gerúndios. Dizia que eu estava fazendo progressos, que o tratamento estava se encaminhando bem.
Na consulta daquela tarde, ele sorria para mim, com os olhos cheios de compaixão. Segurava a mão da minha mãe, exalando simpatia, conforto, otimismo. O que mais alguém pode pedir de um oncologista?
Ele sempre falava das perspectivas para os próximos meses.
Ele nunca falava do próximo ano.
Com a mão já na maçaneta, me virei e perguntei, hesitante, se podia destrancar a matrícula na faculdade. O sorriso de minha mãe sumiu. O dele permaneceu, congelado, enquanto me dizia para esperar mais um pouco.
Só mais algumas semanas.
Minha mãe desceu comigo no elevador, em direção à garagem onde deixara o carro. Tagarelava sem parar, falando do passeio à praia que faríamos com toda a família. Apertei o botão do térreo.
- Onde você vai?
- Dar uma volta. Passear um pouco.
- Mas...
- Não se preocupe, de noite estou em casa.
Ela abriu a boca para protestar, mas a porta do elevador já se fechava.

Eu não queria ir a nenhum lugar em especial. Não queria nem mesmo ficar sozinha com meus pensamentos. Queria me misturar às outras pessoas na rua, sumir na multidão, desapercebida. Meu cabelo tinha crescido um pouco, eu não precisava mais usar aqueles lenços de cores alegres amarrados ao crânio. Na rua, ninguém olhava para mim; e isso já era um alívio.
Só o homem na lanchonete, onde parei para tomar um capuccino, olhou para mim.
Não levei a mal aquele olhar. Fazia tanto tempo que eu não ficava com ninguém, mal lembrava do meu último namoro. E depois, aquele homem devia ter no mínimo uns setenta anos.
É verdade que não me dirigia aquele olhar bondoso das pessoas mais velhas – na época que eu estava careca, era um festival de olhares de compaixão. Era um olhar interessado, embora talvez não de interesse sexual... No fundo, toda essa história é uma questão de olhares.
Bruno me olhava como se enxergasse em mim uma perspectiva.
Velho ou não, foi com um  movimento ágil e decidido que ele se levantou da sua cadeira, pegou a bandeja – estava comendo um sanduíche de queijo, se não me engano – e se aproximou de minha mesa.
- Posso sentar aqui? - perguntou.
Concordei, achei ótimo. Nem me lembrava da última vez que conversara com alguém que não estivesse morrendo de pena de mim. Meus amigos, que no começo me visitavam bastante, agora já espaçavam as visitas. Estavam ocupados. Ocupados com a vida – estudo, namoro, trabalho, aquelas coisas odiosamente normais. 
O que mais contar? Havia em Bruno alguma coisa diferente dos outros velhos. Os cabelos brancos eram compridos, ele usava uma calça jeans. Não sentia, na sua atitude, a condescendência tradicional que os mais velhos têm com os jovens. Me fazia perguntas e ouvia com atenção minhas respostas.
Naquela conversa, não fiquei sabendo muita coisa sobre sua vida; apenas que era solteiro e não tinha filhos. Morava sozinho num pequeno apartamento do centro da cidade. Algumas vezes, quando estávamos passeando, me mostrou o local. “Da próxima vez vamos tomar um café lá”, prometia. Mas a próxima vez demorou para chegar.
Não contei logo a ele da minha doença. Só no dia em que chegaram os resultados dos meus  exames. Nesse dia, o médico bondoso foi obrigado a dizer algumas coisas desagradáveis aos meus pais. Minha mãe chorou. Meu pai perguntou se não haveria algum engano. O médico respondeu que, sem dúvida, a Medicina não é infalível, mas... Eu fiquei olhando para a parede em frente a mim. Uma parede branca – a única que não estava coberta com os diplomas e títulos do doutor. Minha mente também estava em branco, eu não pensava em nada. Há alguns meses tinha começado a fazer meditação, a terapeuta dizia que ajudava.  Esvaziei a mente.
Naquela noite, escapuli de casa e fui procurar Bruno. Marquei um encontro no bar onde sempre nos víamos. Ignorei os chamados frenéticos dos meus pais no celular. Bruno ouviu minha história como se já esperasse tudo aquilo.
- É uma pena, disse no fim. Eu sou um velho, e no entanto, vou viver mais que você.
Olhei para ele, magoada. Mas o seu rosto continuava sereno, sem sinal de crueldade.
- Não é justo – disse, balançando a cabeça.
Explodi em soluços, e ele me abraçou. Senti o cheiro fraco, levemente adocicado do seu corpo. Os velhos cheiram diferente. Me endireitei, enxuguei as lágrimas e olhei direto para ele:
- Eu queria ir pra sua casa.
Ele balançou a cabeça, como se já esperasse por aquilo:
- Mais tarde. – disse, cortês. - Um dia desses.

Depois disso, Bruno sumiu. O telefone que tinha me dado não atendia. Também não tinha secretária eletrônica. (Há algo de fantasmagórico num telefone que toca sem parar, sem resposta nenhuma, humana ou eletrônica).
Nas semanas que se seguiram, meu estado piorou. Comecei a desejar que tudo se acabasse logo. Depressa. Estava farta das injeções, dos remédios, dos presentinhos que as visitas traziam (minha família tinha obsessão por geléias), dos programas vespertinos de tevê; e principalmente dos ursos de pelúcia que, no meu quarto, ainda lembravam a infância.
Eu não iria muito além dos ursos de pelúcia...
Também estava farta das caras pálidas e tristes dos meus pais. Imaginava como a vida deles seria melhor sem mim. E meus irmãos, então? Que descanso para os dois.
Dessa vez não fui internada. Pedi para ficar em casa. Atenderam o meu pedido sem discussão: mau sinal.
A janela do meu quarto dava de frente para o paredão de um outro edifício. No primeiro dia em que pude me levantar da cama, olhei com cobiça o estreito espaço dentre os dois prédios. Doze andares. Mais do que suficiente. Pensei naquele espaço durante dias. Mas meu organismo, aos poucos, ia reagindo. Eu estava melhor. Talvez ainda tivesse algum tempo para realizar alguns desejos. Pensei na minha nova obsessão: a carne cansada de Bruno. Era um capricho. Talvez fosse até sintoma da doença, por que não? afetando o meu comportamento. (Estranho. Eu estava morrendo, mas o meu corpo continuava fabricando hormônios, exigindo resposta para incômodas urgências, que tinham como fim último a preservação da espécie. Não tinha o menor sentido).
Assim que me senti capaz, saí do prédio, peguei um táxi e fui visitar Bruno.

Era um prédio velho e escuro. Devia ter visto dias melhores, antes que alguém tivesse a péssima idéia de construir um viaduto à sua frente.
O porteiro me informou o número do apartamento de Bruno, e disse que o interfone estava quebrado. Quando perguntei se poderia subir, encolheu os ombros. O elevador tremia tanto, que pensei que não sobreviveria à viagem. Seria bem irônico, morrer de um acidente àquela altura...
Lá em cima, toquei a campainha e esperei. Nada. Experimentei a maçaneta. A porta estava aberta. Entrei.
O apartamento de Bruno era pequeno. Despersonalizado. Dava a impressão de que ele comprara seus móveis, e até a gravura modernista que adornava as paredes, num dos “lixões” que proliferavam na vizinhança. Fui até o quarto. Estava vazio, com a cama feita. A cozinha, arrumada. Algumas xícaras do café-da-manhã ainda descansavam no escorredor. Na geladeira, laticínios, frutas, e uma embalagem de comida congelada.
Decepcionante – refleti, voltando ao quarto e me sentando na cama. Com uma pessoa tão misteriosa quanto Bruno poderia morar num lugar tão banal? E no entanto, o apartamento era mesmo dele. Encontrei até um livro que tinha lhe dado de presente, com a dedicatória escrita por mim.
Eu era uma garota mimada e prepotente. A proximidade da morte tinha derretido meus limites, que nunca foram grandes. Já que estava no apartamento, não vi nada de errado em revistá-lo.
Comecei revirando as gavetas da cômoda. Coisas mais pessoais começaram a surgir. Um retrato recente de uma mulher, morena, muito jovem, de grandes olheiras. “Sua para sempre, Luísa”. O cartão de um rapaz: “Diego Moreira, engenheiro”. Engenheiro?  Uma foto de um outro rapaz, sorrindo, tímido: “Com todo o amor para o Bruno, Artur”.
Bruno era um conquistador – pensei. E, pelo visto, não fazia diferenças entre os dois sexos. Que me importava, compraria o pacote todo.
Foi então que passei a mão debaixo de uma camisa azul de listras, e senti um pequeno retângulo plastificado. Era um documento de identidade. “Bruno Garcez”.  A foto era de um adolescente moreno, de olhos idênticos aos do meu amigo. Um filho, talvez? Mas não, o pai daquele rapaz se chamava João. Comecei a esquadrinhar o RG, e quanto mais olhava, quanto mais examinava, mais me convencia de algo incrível. O portador daquele documento era meu amigo Bruno.
E, se a data de nascimento estivesse certa, ele era só três anos mais velho que eu.

Quando Bruno chegou, pedi explicações. Ele não se perturbou, apenas disse:
- Sabia que um dia você ia descobrir. Você é esperta, Ana.
Não lhe apontei o óbvio - ou seja, que não era preciso ser esperta para entrar no apartamento de alguém, revirar suas coisas e achar um documento. Continuei olhando fixamente para ele, aguardando uma explicação.
- Quer chá? - sem esperar pela minha resposta, ele encaminhou-se para a cozinha. Fui atrás dele – Eu te falei desde o começo, não é um bom negócio.
- O que não é um bom negócio?
- Há uns cinco anos, eu era como você. Jovem, muito jovem, esperando a morte num hospital.
Colocou água numa panelinha, acendeu o fogo e me olhou nos olhos. Eu devia ter percebido antes: Bruno tinha olhos de adolescente.
- Aí alguém me fez uma proposta. E eu aceitei.
Quem era esse alguém? Bruno teve um sorriso malicioso: “Um sedutor”, respondeu. Na época lhe pareceu um excelente negócio. Só mais tarde foi perceber as desvantagens da troca. Estava vivo,  mas...
Falei sem pensar:
- Pois eu aceitaria essa troca.
- Bem se vê que você não passou o que passei... Sabe o que é ver os olhares das mulheres desviarem de você? Sentir dores no joelho, cada vez que tenta correr? Ou ficar sozinho o resto da vida, porque não pode dividir sua história com ninguém?
- Eu estou sozinha também. E não posso dividir minha história.
- Entendo – afirmou Bruno. - Já passei por isso.

Engraçado como as coisas mudaram, naquela noite. Cheguei naquele apartamento com uma expectativa muito clara, mas nada se passou como eu esperava. Em vez de provar da velha carne adocicada de Bruno, às onze da noite estávamos sentados à mesa da cozinha, negociando o acordo ao qual estou presa até hoje.
Fez parte do trato, eu imagino, uma amnésia parcial. Não tenho recordação exata dos termos que aceitei. É tudo muito vago, esfumado. Fechei negócio com Bruno. Sei o que comprei, e o preço que paguei. Mas os detalhes do acordo me escapam. Me lembro apenas de ter pensado que não tinha nada a perder.
O preço que Bruno pedia pela minha vida, naquele momento,  não me pareceu tão pesado. E no entanto, ele me avisou que era alto demais, que não valia a pena. Parecia relutante em vender sua mercadoria. Hoje sei que isso faz parte do seu repertório de truques. Odeio Bruno.
Duas imagens perduram, do começo e do fim da nossa conversa. Na primeira, estamos conversando, sentados àquela mesa. Na segunda, ele me avisa, calmamente:
- É melhor você não voltar hoje para casa.
Olhei para minha mão, tão branca e lisa. De repente ela começou a se enrugar, a ficar torta, se encher de pintas, a se engelhar. Eu nunca mais poderia voltar para casa. Bruno me dera a pior das maldições: a vida eterna. O preço? Era aquele mesmo.
Arrastei-me até o seu quarto (como doíam meus joelhos!) e quando me vi no único espelho da casa, tive uma crise de gritos e choro.
O arrependimento foi instantâneo. Chorei, implorei, pedi para voltar atrás. Disse que não me importava de morrer. Ele pediu que me acalmasse. Fosse à cozinha, tomar um copo d'água com açúcar.
Quando voltei para a sala. Bruno tinha ido embora, e nunca mais o vi.

Claro que o persegui pela cidade inteira. Demorou anos para que desistisse de encontrá-lo. Anos de solidão e de medo. De dormir na rua com um velho cobertor puxado sobre a cabeça, vigiando para que ninguém viesse roubar meus poucos pertences.
Uma vez, um sujeito me enfiou uma faca no coração. No dia seguinte, acordei ilesa.
Hoje tenho um emprego de vendedora, numa lojinha escura da parte mais decadente do centro da cidade. O dono me paga o suficiente para custear uma quitinete ali perto, e ainda me dá uma refeição por dia. É um bom rapaz.
Quando não estou na loja, ando horas e horas pela cidade. Como já disse, perdi as esperanças de encontrar Bruno. Mas procuro me aproximar de seus clientes. É difícil, porque a maioria tenta fugir. Eles acham que já existe miséria suficiente em suas vidas, e não querem conhecer seus iguais.
Quando consigo me aproximar de um desses velhos patéticos, puxo do bolso a sua carteira de identidade e a mostro. Todos eles já viram esse documento. Todos contam a mesma coisa.  Eram jovens, e estavam morrendo. Foram abordados pelo mesmo homem, um tanto relutante. A história é quase idêntica:
- Ele avisou que eu estava fazendo um mau negócio...
Eles nem imaginavam o quão ruim seria.
Nos reunimos de vez em quando. Estamos sempre doentes, temos todas as doenças da velhice. Mas o nosso número é sempre o mesmo. Ninguém jamais desaparece. Juntos, chegamos a uma conclusão: é preciso encontrar Bruno. Ele é o empresário. O dono desse sinistro negócio. Deve desfazer o mal que nos fez. E, se não conseguir...
Não me pergunte por quê. Mas temos certeza de que Bruno não é imortal.











Olá. Esse é o primeiro post do blog "O Negócio de Bruno".
Meu nome é Dóris Fleury e criei esse blog exclusivamente para acompanhar o processo de criação de histórias para o personagem Bruno. Se meu projeto literário der certo, você nunca saberá exatamente quem é o Bruno, mas com certeza ficará bastante interessado nessa figura.
Bruno atravessa as eras, fazendo intervenções na vida das pessoas. Ele tem estranhos poderes, que nunca ficam exatamente definidos. Mas se você quer ter uma primeira idéia de quem é Bruno, leia essa primeira história dele. Chama-se, justamente, "O Negócio de Bruno", e foi escrito alguns anos atrás.